Os nove pentes d’África – Cidinha da Silva / Ilustrações de Iléa Ferraz – 2009 – Belo Horizonte: Mazza Edições.

18 de outubro de 2020 § Deixe um comentário

Esta história, acho difícil de classificar: literatura infanto-juvenil, novela, conto longo? Prefiro chamá-la de narrativa. É contada por Bárbara, uma jovem de 16 anos, capoeirista e muito mais. A matriz cultural angolana é uma presença no livro, perpassando também na maneira como a família de Bárbara lida com a morte de seu avô, um escultor que construiu nove pentes para deixar de herança para cada um de seus netos e netas. Portanto, a morte em Os nove pentes d’África é vivenciada de uma maneira muito diferente do Ocidente e das regiões ocidentalizadas-colonizadas do mundo. Embora haja dor, a presença do avô fica em cada objeto-arte deixado e em todas as suas histórias contadas. Ficam, agora, no corpo de seus descendentes, criando novas possibilidades para a vida, e portanto, de vivenciar a nossa finitude. O livro é lindamente ilustrado por Iléa Ferraz.

A família de Bárbara, além de ter alguns membros iniciados em uma religião de matriz africana, inclui a existência de uma seita masculina (isto não exclui, de maneira alguma, a centralidade e a força das mulheres na história e na sociedade narrada). Alguns membros da família ganham nomes dos inquices, as divindades cultuadas nessa matriz angola-congo, de mitologia banto, assim como recebem denominações de orixás iorubás, mais conhecidos por quem está mais afeito aos mundo dos candomblés e umbandas. Temos também nomes em tupi-guarani e outros forjados pela criatividade de Cidinha, revelando mais uma vez a sua potência no imaginar e fabular histórias.

O pente era portador de vários significados, principalmente para quem o recebia. Depois era acompanhar o entardecer adorado pelo vô, a hora do sol ir embora. Momento de beber o mistério, em silêncio (p. 9).

Embora narrado por Bárbara e apesar da passagem de vô Francisco enquanto foco, tendo o luto e a sabedoria de vó Francisca realçada, a protagonista mesma da história é a própria família, ou seria a ancestralidade? É uma força agregadora, ensina, mas também diferencia e embebe em luta e embates. As personagens apresentadas por Cidinha da Silva são complexas, fugindo de qualquer estereótipo. Ana Lúcia, umas das primas de Bárbara, portanto herdeira de um pente, desgosta de quase tudo marcadamente de matriz africana: a capoeira da prima, os dreads do irmão, por exemplo. Mas embora Bárbara admita não gostar de Ana Lúcia, sabe: pode até demorar muito, um dia a prima compreenderá o valor de sua história herdada.

Outra mensagem narrada de maneira tão delicada, quase encobrindo a complexidade do assunto, é a percepção da modernidade e da tradição enquanto costuras, e não oposições, ao contrário do pregado pela razão ocidental, ensandecida pelo gosto de classificar e hierarquizar. A família de Bárbara tem profissionais liberais e artistas, gente a encantar o mundo e a explicá-lo. Gente sabedora do poder do mistério, mas também da praticidade e do agir, quando necessário. Tem gente também desorientada, igual ao pai de Bárbara, parecido com um menino.

Essa diversidade atravessa o livro. Depois de vivenciarem o luto de vô Francisco, Neusa e Dinda, filhas do casal original apresentado, sugerem ter toda a arte criada por Francisco abrigada em um museu comunitário, criado por elas. Neusa se inspira em alguns museus vistos nos Estados Unidos, quando por lá morou. O empreendimento é comunitário com razão, apesar de saberem do valor das peças para a família, todas sabem da riqueza advinda do compartilhar desse acervo com outras famílias negras e brasileiras. Contar é partilhar, revelar e ensinar, também o é.

Nove Pentes d’África está eivado de palavras pouco usuais para quem tem parca proximidade com as culturas e histórias africana e afro-brasileira. Isso não deveria ser assim. Afinal, temos uma lei reconhecedora da importância do ensino de outras raízes, para além da matriz cristã e eurocentrada. Por direito, o livro foi selecionado pelo Projeto Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2020, indicado para os sextos e sétimos anos do ensino fundamental, portanto, educadoras e educadores puderam solicitar a obra para receberem gratuitamente em suas escolas (o prazo já expirou). Talvez, assim, mudemos esse desconhecimento. Não é raro encontrar gente leitora capaz de compreender os meandros da literatura russa, japonesa, das confabulações inventadas de diversas literaturas fantásticas, mas impossibilitadas de perceberem a diversidade de matrizes africanas e indígenas encontradas ao seu lado. Uma palavra fora do cânone ocidental e já encontram dificuldade de compreensão. Vai entender… Digo isso pois vi comentários semelhantes, do complicado entendimento de alguns termos e referenciais trabalhados por Cidinha em outro livro, Um Exu em Nova York. É, racismo tem muitas faces mesmo. Há buscadores na internet, enciclopédias virtuais e bons livros para nos auxiliar. Basta buscar, Nei Lopes, por exemplo, com a sua monumental Enciclopédia brasileira da diáspora africana (2011), é uma boa pedida.

Da mesma forma que Cidinha da Silva termina, com o nascimento de Kitembo, o mais novo membro da família, talvez uma referência ao inquice Tempo, o vento forte criador congo-angola, torço para o mesmo acontecer conosco, com muitos novos e novas venham com a força de Bárbara, Cidinha, Francisco e muito mais. Vamos precisar se quisermos manter a qualidade de humano para as coisas que fazemos.

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