Oswald pede a Tarsila que lave suas cuecas – Bruna Kalil Othero – 2019 – Belo Horizonte: Letramento.

27 de junho de 2020 § Deixe um comentário

Você deve ter visto a figura por aí. Um cara branco de barba estilosa. Usa roupas confortáveis e despojadas até, mas você só consegue enxergá-lo vestido de terno e gravata borboleta. Não importa se use cuecas coloridas e arejadas, parece sempre estar de ceroulas.

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O cara tem uma fixação: Europa. EUA. Essas coisas que têm manias de Império. Faz de tudo para ser para frente, aberto para a diferença. Se diz antifascista e às vezes, antirracista. Mas tem medo de que a pauta contra o racismo sequestre a sua contra o… Ele nem sabe. Esse cara vai sempre falar das artes, esculturas, dos museus bolorentos. Quando ele quiser ser moderninho vai comentar do postrockundergroundpostpunkposthumanitypostfuck. Vai te convencer a assistir a uns filmes filmados por smartphone sem trilha sonora. É pra ouvir com a alma. Esse é o cara também que acha a cerveja não artesanal um saco, coisa deveras popular e vai fazer de tudo para você mudar de vida e largar essas porcarias industrializadas. Esse cara não vai se vestir de verde e amarelo, nem fazer manifestação a favor do Bolsonaro. É que ele não precisa nem se vestir de nada, o apoio já está no corpo.

Esse é o chato, atulhado, que Oswald de Andrade combateu. Ele pode nos atravessar às vezes, mas se você o vêr dentro de si, mate-o. Uma boa forma de fazer isso é dançando um bom funk e ler esse livro da Bruna Kalil. Se conseguir os dois ao mesmo tempo, parabéns. São poemas que em seu conjunto nos falam do cânone, aliás, transa com o cânone. Eu até pensei numa transa com o Manuel Bandeira, meu cânone de Platão. Opa, plantão. Aliás, nem precisei ler o livro para pensar nisso. Sempre estou sentindo o Manuel com alguma sensualidade.

Ao longo da poesia de Bruna Kalil a gente escuta o fardo de tantos versos já passados e dança com a coragem de dizer algo novo. Que de novo não tem tudo, mas tem alguma coisa. Aliás, o livro foi premiado pelo finado Ministério da Cultura. Em razão da comemoração dos cem anos da longa semana de 1922.

A poesia de Bruna faz com que os artistas modernistas de 22 nos olhem com força. Eles estão nos julgando. Então foi esta merda que vocês viraram? Não extinguiram ainda os europete, os hot-dog? Ainda fazem arte mirando uma brancura de olhos azuis? Permanece o medo. A raiva. O ódio a tudo que faz Brasil Brasil. Permanece a vergonha de ser país de nações indígenas. Odeia-se o fato de ter existido escravidão por aqui. Não pela tragédia e absurdos existentes nesse projeto de genocídio, mas justamente pela resistência negro-africana e pelas suas marcas incontornáveis por todo esse país continental. O 22 do passado se encontra com o 22 por vir e o efeito é explosivo.

E se tem até escritor e escritora alegando que temos liberdade de pensamento e expressão e por isso não é condenável ter votado num sujeito que defende tortura, estupro, racismo, genocídio e tudo o que não presta nesse mundo, o que diriam a literatura de 22, as artes plásticas de lá, a respeito desse Buraco que o brasil se enfiou?

Se você quer sentir, talvez seja bom passar pela experiência de ler esse livro. Mas duma vez, numa sentada. Ou deitada. Li na rede, embalado pelo calorão dos trópicos. Você vai se convencer de que a vanguarda que nos restou foi a militar, de velhos babões reformados. As grandes editoras, aquelas que publicam os caras que mesmo de havaianas parecem estar usando terno, essas mesmas é que perderam o fio da meada. Ainda bem que temos batalhões, miríades e mais miríades, uma ruma, um bocado de gente escrevendo fora dessa curva, desse padrão conivente com a caretice, o fascismo e o racismo que defende liberdade de expressão fazendo bilhetinho para protestar contra o absurdo. Na poesia da Bruna podemos aprender que não se combate com notas, mas com poesia. Aí é barra pesada. Pode fazer o teste, passe – digitalmente, respeite a quarentena e o isolamento social, se possível, por favor – com esse livro na frente de qualquer bolsonarista, leia um poema aleatório do livro. Perceba como ele vai babar. Talvez possa até rosnar e lhe morder, mas acho difícil, tem certo tipo de poesia que causa morte imediata para mentes engaioladas. Esses versos, por exemplo. Fazem. E nem vou comentar o título do livro que ele já diz muito. Quase tudo. 

Contra a realidade social, vestida e opressora
– Oswald de Andrade

guardar as genitais dentro das ceroulas.

guardar a buceta dentro da tanga minúscula.
guardar o cu trancado a sete chaves.
(ou mais, se for preciso.)

agora, o pau, senhoras e senhores,
o grandíssimo pau,
o pau maioral,
o pau imoral,
o pau caralhal,
o pau abissal,
esse a gente vai enfiar dentro da sua boca
pra sempre.

Coração na aldeia, pés no mundo – Auritha Tabajara – 2018 – Lorena, SP: UK’A Editorial.

27 de maio de 2020 § Deixe um comentário

Esse é um livro diferente. E espero que muitos outros livros assim sejam escritos, publicados e lidos. Não é pouca coisa não. O livro que tenho em mãos, e tenho esperança que muitas pessoas façam o mesmo, é de uma autora que nasceu no Ceará, em uma aldeia. Sim, ela nasceu na aldeia da nação e povo Tabajara. Essa nação compartilha espaço com encantados e outros parentes de diversas outras nações, também no Ceará (Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia, Tupinambá, ainda podendo existir muitas outras, sem contar que nem citei as comunidades quilombolas aqui). Nações que enfrentam o racismo ambiental e institucional, a invasão e apropriação frequente de suas terras e muito mais. Viver, para essas coletividades, é perigoso. Então, quando vemos publicado um livro em forma de cordel, todo rimado em sextetos septissílabos, em uma editora indígena, coordenada pelo mestre da literatura Daniel Munduruku e escrito por uma mulher Tabajara, não é coisa pouca. Infelizmente, ainda não é algo comum, e quando acontece merece celebração. Além do mais temos a obrigação (ao menos por convicção) de incentivar esse tipo de obra. Brasileiro que não sabe de quem estava aqui antes, e cá continua e persiste, deveria se envergonhar. Vamos lá. Auritha Tabajara, ou Ita (que em tupi é pedra), foi registrada por outro nome, como ela nos narra:

Mas, para se registrar,
Seguiu a modernidade
Com o nome de Francisca,
Pois, para a sociedade,
Fêmea tem nome de santa
Padroeira da cidade.

O cordel, ricamente ilustrado com as xilogravuras da Regina Drozina, traz a história de uma princesa, mas não mais aquelas princesas da mitologia do cordel, e sim da própria Auritha. A protagonista-eu-lírico, quando adolescente, foi explorada por pessoas da cidade grande (Fortaleza), hábito que a maioria dos cearenses ainda têm na memória, e muitos sem se envergonhar. Era e ainda é muito comum uma família “pegar” (sequestrar) uma criança em situação de vulnerabilidade para “cuidar”, e essa criança não dificilmente era indígena ou quilombola, e quase todas, meninas. Essa criança teria um lar, comida e às vezes até poderia estudar, desde que servisse seus patrões com trabalhos domésticos. Isso desembocava frequentemente em outros tipos de violação. Mas a heroína consegue escapar e volta para a sua aldeia. Se apaixona, casa, tem filhos, divorcia, vai para São Paulo. Briga com o marido, tem uma disputa judicial com ele, perde a guarda de suas filhas e depois consegue recuperá-las. Enfim, logo descobrimos que temos em mãos uma história contemporânea de uma Tabajara que mora em São Paulo, mas não esquece a sua aldeia, sonha com as ervas e prepara seus remédios: é uma excelente mezinheira, inspirada pela avó. Além disso, sempre foi uma criança que rimava tudo, inspirada pela natureza e o que a circundava.

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Auritha Tabajara renova o cordel. Se essa literatura já havia sido apropriada pelas culturas populares brasileiras, fazendo circular histórias, mitos e lendas, adaptando grandes obras da literatura para os versos ritmados e rimados, o movimento que engloba Auritha e outras mulheres, tais como a Jarid Arraes, rejuvenesce essa literatura e a reveste com novas lutas e histórias. As mulheres sempre estiveram no cordel e na sua produção, mas foram soterradas pelo machismo. Esperamos que com Auritha e tantas outras isso mude. Que com Aurtitha venham mais cordelistas Tabajara e de tantas outras nações indígenas e quilombolas, conectadas, para citar o mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, pela confluência quilombo, favela, terreiro, aldeia. Ele sempre nos diz que quando isso acontecer, o asfalto vai derreter.

Tem mais. Coração na aldeia, pés no mundo levanta uma discussão importante. Por muito tempo se entendeu que o indígena (uso esse termo genérico apenas para simplificar, mas o ideal seria utilizar o nome da própria nação em questão) deixa de ser quem é se sair da sua aldeia. Esse tipo de reducionismo da identidade indígena ainda perdura em nossos dias.

Ora, a prioridade sempre vai ser na conquista de suas terras, que lhe são garantidas por direito. Entretanto, como a todo mundo, não se pode negar o direito de locomoção dessas pessoas. Sabemos que isso acontece mais por razão da desigualdade social, econômica e pelo colonialismo/racismo que assola a relação que os brasileiros têm com as nações indígenas. Portanto, por causa da violência e desigualdade muitas famílias indígenas, ou indivíduos sozinhos (sabemos que eles não vão sozinhos, e que levam parte de sua cosmologia com eles) acabam se mudando para cidades, com esperança de terem uma melhoria de vida. Não é raro dessa melhora não acontecer. Além de passar por situações difíceis na cidade, vários indígenas têm que vivenciar o preconceito, de terem suas identidades questionadas pelo simples fato de existirem e resistirem na cidade.

Auritha narra:

Vivo na cidade grande,
Mas não esqueço o que sei.
Difícil é viver aqui,
Por tudo que já passei.
Coração bom permanece;
A essência fortalece
Ante ao pranto que chorei.

Na aldeia, na cidade e em qualquer lugar os povos indígenas devem ser respeitados. Estamos morando em suas terras, pisando em solo que já têm donos, tanto humanos, quanto entidades mais-que-humanas que pajés, mezinheiras, rezadeiras e benzedeiras demonstram serem muito mais do que lendas e folclore. São e isso sim, vida. Vida longa para Auritha Tabajara, ao povo Tabajara e todas as encantarias cordelísticas.

 


 

[1] Conheça Daniel Munduruku e a UK’A editorial.
[2] Conheci Auritha Tabajara por conta da macuxi Julie Dorrico, que é doutoranda em literatura. Ela também organiza os perfis @leiaautoresindigenas e @leiamulheresindigenas.
[3] Compre o livro de Auritha Tabajara! Nesse contexto de pandemia é super importante. Já era necessário em uma situação normal, imagine agora. Você pode contatar a autora pelo Instagram ou Facebook.
[4] Minha amiga Luciana Marinho é antropóloga e sua tese foi sobre povos indígenas na cidade, mais especificamente em Boa Vista. As nações que aparecem na tese são os Macuxi e Wapichana. Vale consultar:
Melo, Luciana Marinho de. Povos Indígenas na cidade de Boa Vista: Estratégias identitárias e demandas políticas em contexto urbano. Tese de Doutorado (Antropologia Social), Belém: Universidade Federal do Pará, 2018.

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