Coração na aldeia, pés no mundo – Auritha Tabajara – 2018 – Lorena, SP: UK’A Editorial.

27 de maio de 2020 § Deixe um comentário

Esse é um livro diferente. E espero que muitos outros livros assim sejam escritos, publicados e lidos. Não é pouca coisa não. O livro que tenho em mãos, e tenho esperança que muitas pessoas façam o mesmo, é de uma autora que nasceu no Ceará, em uma aldeia. Sim, ela nasceu na aldeia da nação e povo Tabajara. Essa nação compartilha espaço com encantados e outros parentes de diversas outras nações, também no Ceará (Anacé, Gavião, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Kanindé, Kariri, Pitaguary, Potiguara, Tapeba, Tapuia-Kariri, Tremembé, Tubiba-Tapuia, Tupinambá, ainda podendo existir muitas outras, sem contar que nem citei as comunidades quilombolas aqui). Nações que enfrentam o racismo ambiental e institucional, a invasão e apropriação frequente de suas terras e muito mais. Viver, para essas coletividades, é perigoso. Então, quando vemos publicado um livro em forma de cordel, todo rimado em sextetos septissílabos, em uma editora indígena, coordenada pelo mestre da literatura Daniel Munduruku e escrito por uma mulher Tabajara, não é coisa pouca. Infelizmente, ainda não é algo comum, e quando acontece merece celebração. Além do mais temos a obrigação (ao menos por convicção) de incentivar esse tipo de obra. Brasileiro que não sabe de quem estava aqui antes, e cá continua e persiste, deveria se envergonhar. Vamos lá. Auritha Tabajara, ou Ita (que em tupi é pedra), foi registrada por outro nome, como ela nos narra:

Mas, para se registrar,
Seguiu a modernidade
Com o nome de Francisca,
Pois, para a sociedade,
Fêmea tem nome de santa
Padroeira da cidade.

O cordel, ricamente ilustrado com as xilogravuras da Regina Drozina, traz a história de uma princesa, mas não mais aquelas princesas da mitologia do cordel, e sim da própria Auritha. A protagonista-eu-lírico, quando adolescente, foi explorada por pessoas da cidade grande (Fortaleza), hábito que a maioria dos cearenses ainda têm na memória, e muitos sem se envergonhar. Era e ainda é muito comum uma família “pegar” (sequestrar) uma criança em situação de vulnerabilidade para “cuidar”, e essa criança não dificilmente era indígena ou quilombola, e quase todas, meninas. Essa criança teria um lar, comida e às vezes até poderia estudar, desde que servisse seus patrões com trabalhos domésticos. Isso desembocava frequentemente em outros tipos de violação. Mas a heroína consegue escapar e volta para a sua aldeia. Se apaixona, casa, tem filhos, divorcia, vai para São Paulo. Briga com o marido, tem uma disputa judicial com ele, perde a guarda de suas filhas e depois consegue recuperá-las. Enfim, logo descobrimos que temos em mãos uma história contemporânea de uma Tabajara que mora em São Paulo, mas não esquece a sua aldeia, sonha com as ervas e prepara seus remédios: é uma excelente mezinheira, inspirada pela avó. Além disso, sempre foi uma criança que rimava tudo, inspirada pela natureza e o que a circundava.

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Auritha Tabajara renova o cordel. Se essa literatura já havia sido apropriada pelas culturas populares brasileiras, fazendo circular histórias, mitos e lendas, adaptando grandes obras da literatura para os versos ritmados e rimados, o movimento que engloba Auritha e outras mulheres, tais como a Jarid Arraes, rejuvenesce essa literatura e a reveste com novas lutas e histórias. As mulheres sempre estiveram no cordel e na sua produção, mas foram soterradas pelo machismo. Esperamos que com Auritha e tantas outras isso mude. Que com Aurtitha venham mais cordelistas Tabajara e de tantas outras nações indígenas e quilombolas, conectadas, para citar o mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, pela confluência quilombo, favela, terreiro, aldeia. Ele sempre nos diz que quando isso acontecer, o asfalto vai derreter.

Tem mais. Coração na aldeia, pés no mundo levanta uma discussão importante. Por muito tempo se entendeu que o indígena (uso esse termo genérico apenas para simplificar, mas o ideal seria utilizar o nome da própria nação em questão) deixa de ser quem é se sair da sua aldeia. Esse tipo de reducionismo da identidade indígena ainda perdura em nossos dias.

Ora, a prioridade sempre vai ser na conquista de suas terras, que lhe são garantidas por direito. Entretanto, como a todo mundo, não se pode negar o direito de locomoção dessas pessoas. Sabemos que isso acontece mais por razão da desigualdade social, econômica e pelo colonialismo/racismo que assola a relação que os brasileiros têm com as nações indígenas. Portanto, por causa da violência e desigualdade muitas famílias indígenas, ou indivíduos sozinhos (sabemos que eles não vão sozinhos, e que levam parte de sua cosmologia com eles) acabam se mudando para cidades, com esperança de terem uma melhoria de vida. Não é raro dessa melhora não acontecer. Além de passar por situações difíceis na cidade, vários indígenas têm que vivenciar o preconceito, de terem suas identidades questionadas pelo simples fato de existirem e resistirem na cidade.

Auritha narra:

Vivo na cidade grande,
Mas não esqueço o que sei.
Difícil é viver aqui,
Por tudo que já passei.
Coração bom permanece;
A essência fortalece
Ante ao pranto que chorei.

Na aldeia, na cidade e em qualquer lugar os povos indígenas devem ser respeitados. Estamos morando em suas terras, pisando em solo que já têm donos, tanto humanos, quanto entidades mais-que-humanas que pajés, mezinheiras, rezadeiras e benzedeiras demonstram serem muito mais do que lendas e folclore. São e isso sim, vida. Vida longa para Auritha Tabajara, ao povo Tabajara e todas as encantarias cordelísticas.

 


 

[1] Conheça Daniel Munduruku e a UK’A editorial.
[2] Conheci Auritha Tabajara por conta da macuxi Julie Dorrico, que é doutoranda em literatura. Ela também organiza os perfis @leiaautoresindigenas e @leiamulheresindigenas.
[3] Compre o livro de Auritha Tabajara! Nesse contexto de pandemia é super importante. Já era necessário em uma situação normal, imagine agora. Você pode contatar a autora pelo Instagram ou Facebook.
[4] Minha amiga Luciana Marinho é antropóloga e sua tese foi sobre povos indígenas na cidade, mais especificamente em Boa Vista. As nações que aparecem na tese são os Macuxi e Wapichana. Vale consultar:
Melo, Luciana Marinho de. Povos Indígenas na cidade de Boa Vista: Estratégias identitárias e demandas políticas em contexto urbano. Tese de Doutorado (Antropologia Social), Belém: Universidade Federal do Pará, 2018.

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